Saiu da Gaveta: O Fantasma da Esquina

Capítulo 1 – Sombras Medievais sob o Sol do Equador

O calor de São Luís não pede licença. Ele entra pela janela, abraça a gente e faz a camisa grudar nas costas antes mesmo do café da manhã ser servido. Aqui, o som ambiente é o reggae que vaza de uma radiola distante e o vento quente que estala nas palmeiras. Tudo é cor, tudo é vida, tudo é solar.

Mas a minha cabeça… a minha cabeça está a quase três mil quilômetros daqui. Minha cabeça está presa em uma noite de garoa fria, em uma esquina cinzenta do centro de São Paulo, no ano de 1937.

Se você mora na capital paulista e já cruzou o Minhocão — aquele gigante de concreto cicatrizado que corta a cidade —, com certeza já deve ter passado por esse prédio. Talvez, preso num engarrafamento interminável em cima do viaduto, você tenha olhado para o lado, visto aquela torre estranha quase tocando a pista, e pensado: “O que diabos isso está fazendo aqui?”

Agora, se você, assim como eu neste momento, não está em São Paulo e não conhece, ou se até está na cidade mas a pressa nunca te deixou reparar nos detalhes da paisagem urbana, eu lhe apresento o mistério.

Imagine um castelo.

Não um castelo da Disney, colorido e esperançoso. Imagine uma estrutura que parece ter sido arrancada à força de uma cidade francesa medieval e colada, sem aviso, no meio do caos de asfalto, fumaça e buzinas.

É o Castelinho da Rua Apa.

Ele se ergue teimoso na esquina da Rua Apa com a Avenida São João.

A Avenida São João. Só o nome já é um verso cantado, um ponto no mapa emocional do país. É ali, onde Caetano Veloso eternizou o encontro com a Ipiranga e viu “alguma coisa acontecer no coração”, que essa construção se impõe como uma nota dissonante na música da cidade.

Enquanto a canção fala da “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, o Castelinho é a prova física da destruição.

Construído em 1912, ele foi o sonho da elite paulistana. Arquitetura francesa, telhado cônico de ardósia escura (aquelas telhas que parecem escamas de peixe), janelas em arco profundo. Enquanto os prédios vizinhos hoje são caixotes quadrados e funcionais, o Castelinho é cheio de adornos e sacadas de ferro trabalhado. Ele é um anacronismo. Ele veste um luto eterno.

Mas o que torna essas paredes assustadoras não é a arquitetura gótica ou a fuligem de décadas que manchou a fachada. É que, ao contrário dos castelos de contos de fadas, aqui não houve “felizes para sempre”.

Dê uma olhada neste vídeo curto para entender a dimensão gótica desse lugar no meio da selva de pedra:


Um pedaço da Europa medieval esquecido no centro de São Paulo.

Aquele lugar foi a residência da família Reis. (Sim, o mesmo sobrenome que eu uso aqui, uma ironia que não me escapa).

Eles não eram apenas ricos; eles eram a personificação do poder paulista da época. Moravam ali Maria Cândida Guimarães dos Reis, a matriarca religiosa e controladora, e seus dois filhos adultos, Álvaro e Armando.

Álvaro, 45 anos, o bon vivant que amava patinação e a vida noturna. Armando, 43 anos, o advogado sério e contido que cuidava do dinheiro.

Dois irmãos que dividiam o mesmo teto, o mesmo sangue e, dizem as más línguas, o mesmo ódio reprimido.

A versão oficial, aquela que a polícia escreveu com pressa nos papéis amarelados que eu leio agora na tela do meu computador, diz que na noite de 12 de maio de 1937, o castelo virou abatedouro.

Dizem que os irmãos discutiram. Dizem que a mãe tentou intervir. O resultado final todo mundo concorda: três corpos no chão da sala, cercados por móveis de luxo importados. Uma pistola Parabellum 9mm fumegante. E o fim de uma linhagem.

Mas aqui em São Luís, enquanto a maré muda, eu leio e releio os laudos. “Suicídio seguido de homicídio”, disseram. Mas como explicar as balas que entraram pelas costas? Como explicar a pólvora nas mãos de quem não atirou?

O Castelinho da Rua Apa hoje é patrimônio histórico. Mas para mim, ele é um arquivo de pedra. E se as paredes daquele castelo pudessem falar, elas contariam uma história que Caetano Veloso jamais ousaria cantar.

Eu trouxe essa obsessão na mala. E nos próximos posts, eu vou abrir a porta desse castelo para você. Não para ver a arquitetura, mas para ver o sangue que a história tentou limpar.

Pegue seu café. Vamos entrar na sala de estar dos Reis.

 
 
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